Antes de contar essa história que parece um filme de suspense, vamos ver quem foi São Damião, que em vida era Damião de Molokai, ou Jozef de Veuster, um belga nascido no dia 3 de Janeiro de 1840, que foi missionário católico da Congregação dos Sagrados Corações. Em 2005 ele foi eleito como o maior belga da história em uma pesquisa aberta da Flamenga, uma TV aberta de lá.
As vicissitudes da natureza não eram o único obstáculo que o sacerdote tinha de enfrentar. Havia outros, menos evidentes, mas mais poderosos, e sem dúvida mais difíceis de vencer: continuavam a praticar-se na ilha os ritos pagãos e muitos dos fiéis de Damião se encontravam ainda sob a influência nefasta dos curandeiros nativos, que procuravam manter a sua identidade em segredo. Nos tempos antigos, esses feiticeiros, chamados kahunas, tinham constituído uma casta muito respeitada e temida, situada logo abaixo dos reis, a quem não se subordinavam.
Com efeito, apenas cerca de cinqüenta anos antes da chegada de Damião, o poder dos feiticeiros chegara a tal ponto que as ilhas estavam dominadas por uma infinidade de tabus, que seriam ridículos se não tivessem resultados trágicos. Um kahunapodia decidir da vida e morte de um homem e, como era crença geral que estava em constante comunicação com a sua divindade favorita, podia decretar um tabu por qualquer motivo. A única escapatória possível para quem transgredisse uma proibição dessas era fugir para uma cidade-refúgio, pois, tal como os antigos israelitas, também os havaianos possuíam redutos murados e cercados de templos, dentro de cujos limites podia abrigar-se qualquer pessoa, independentemente do crime que tivesse cometido.
Depois da morte de Kamehameha I (o primeiro monarca do Reino do Havaí), os reis passaram a opor-se ao poder dos kahunas e a casta dos feiticeiros entrou em decadência. Só nas regiões mais afastadas é que ainda aparecia ocasionalmente algum desses feiticeiros, formando ao seu redor um grupo de adeptos que praticava em segredo determinados ritos sinistros.
A certa altura, Damião percebeu indícios de que existia no seu distrito um desses grupos: chegaram-lhe rumores vagos acerca de feitiços, medos e exóticas e obscenas danças rituais, e à cabeceira dos moribundos começaram a aparecer amuletos e simpatias, sinais evidentes do trabalho de algum curandeiro. Embora se tivesse lançado numa vigorosa campanha, pregando contra a superstição e procurando descobrir a identidade dos sectários e os seus locais de reunião, não obteve resultado algum. Mesmo os seus paroquianos mais fiéis e dedicados assumiam um ar taciturno diante das suas perguntas, como se temessem alguma vingança sobrenatural, e o missionário teve de reconhecer, com grande tristeza, que o mal parecia estender-se, ao invés de diminuir. Rostos que antes se abriam num sorriso amistoso agora viravam-se de lado quando passava; muitos já não lhe respondiam aos cumprimentos; o número de assistentes à missa começou a decrescer e até nos funerais, quando encomendava o corpo, surpreendia às vezes uns olhares furtivos entre os presentes, como se se tivessem invocado outros poderes.
Certa noite, sentado à porta da sua casa para desfrutar da paz do entardecer, observava tranquilamente o céu estrelado quando ouviu à distância uns tambores que soavam com uma nota estranha: não era o habitual toque festivo, mas um tantã rápido e inquietante, que se interrompeu abruptamente. O agudo silêncio que se seguiu foi cortado por um grito lancinante e inumano, e novamente o silêncio. Damião pôs-se de pé num salto e olhou alarmado na direção de onde viera o barulho, mas já vivera nas ilhas tempo suficiente para saber que era melhor não tentar nada durante a noite.
Na manhã seguinte, explorou meticulosamente os arredores e efetivamente encontrou, escondido numa moita de xaxins, um ídolo de pedra toscamente esculpido. Examinou-o com cuidado, à luz esverdeada que se filtrava através das frondes: as feições eram grosseiras e a figura obesa e atarracada; tinha cerca de um metro e vinte de altura e estava colocado sobre uma laje achatada, evidentemente um altar, salpicada de manchas escuras e pegajosas de sangue coagulado, sinais claros de um recente sacrifício sangrento. Tomado de horror, Damião aplicou os ombros contra a imagem e derrubou-a sobre o altar, que se despedaçou. A seguir, cortou dois galhos de uma árvore próxima e amarrou-os com um cipó, formando uma cruz tosca que cravou triunfalmente no mesmo lugar onde se erguera o ídolo. E, para que ninguém tivesse dúvidas sobre o autor do feito, deixou o seu chapéu de clérigo ao lado, bem à vista.
O dia seguinte era um domingo, e na homilia o sacerdote não mediu as palavras para denunciar os praticantes da idolatria. Era um desafio, e a reação não se fez esperar: na manhã seguinte, encontrou atado à sua porte um amuleto feito de uma concha retorcida de cinzas mal-cheirosas. Sabendo muito bem que o vilarejo inteiro estava pendente das suas menores ações, tomou a peça e, alardeando desprezo, amarrou-a ao rabo de um grande porco. Sem dar importância ao abracadabra que arrastava, o suíno fuçou e chafurdou por toda a aldeia naquele dia, à ruidosa maneira dos da sua espécie, mas durante a noite foi morto e deixado à porta de Damião, com a garganta aberta por um profundo corte serrilhado.
O missionário procurou levar o incidente para a brincadeira, mandando dizer que, apesar de o açougueiro não lhe ter parecido dos mais competentes, agradecia muito o presente anônimo da carne fresca. Mas os habitantes da aldeia não compartilhavam da sua tranqüilidade: ninguém ousou aproximar-se da carcaça e até o nativo que o ajudava nas tarefas da casa desapareceu quando Damião foi chamá-lo para esfolar o porco.
Tarde da noite, enquanto se remexia na cama, inquieto com o novo problema que minava e até ameaçava destruir todo o seu trabalho, o ruído distante dos tambores veio novamente interromper o fio dos seus pensamentos. Aguçou os ouvidos e percebeu um segundo som, como de alguém que arranhasse a sua janela. Do lado de fora estava uma mulher, uma criatura tímida e amedrontada, que conhecera tempos atrás por haver-lhe tratado o filho doente. Com a voz quase irreconhecível de pressa e de medo, ela sussurrou-lhe umas poucas palavras e depois, como que assustada com a sua própria ousadia, desapareceu de novo nas sombras antes de o sacerdote ter podido fazer-lhe qualquer pergunta. Mas tinha dito o bastante: numa caverna mortuária não longe dali, acabara de começar uma cerimônia de invocação dos espíritos malignos contra a vida do padre.
Damião vestiu-se e em poucos instantes estava a caminho do local, situado na base de um penhasco encravado no monte. Essa caminhada de cerca de uma hora pela mata fechada e no meio da mais absoluta solidão deve ter posto à prova os seus nervos indomáveis, mas em momento algum hesitou.
Ouvia-se o ritmo abafado dos tambores. A boca da caverna estava iluminada por um pálido clarão vermelho, que bruxuleava sobre as rochas vizinhas. Saindo das sombras da floresta, Damião aproximou-se da penha e, nesse momento, sobrepondo-se ao ruído dos tambores, ressoou um longo estertor agudo, como se algum animal estivesse sendo torturado. Os participantes da cerimônia deviam sentir-se seguros, pois não se viam sentinelas, e o sacerdote pôde chegar sem problemas à entrada da caverna e contemplar o espetáculo por detrás do enorme pedregulho.
No centro do recinto, fincadas no chão, erguiam-se quatro tochas altas e fumarentas. A sua luz vacilante permitia entrever um semicírculo formado por uns trinta homens de diversas idades, agachados ombro a ombro, o olhar voltado para as sombras do fundo da caverna, onde uma figura fantasmagórica, curvada como uma hiena, estava ocupada num trabalho que Damião a princípio não conseguiu distinguir. Em voz baixa, a criatura cantarolava monotonamente uma invocação. Por todos os lados, sobre pilhas de mortalha, viam-se restos humanos, ossos estranhamente brancos naquela obscuridade, espalhados numa confusão inextricável de caveiras, pernas e mãos desmembrados. O ar estava quase irrespirável e fedia a morte. À luz das tochas, as paredes negras brilhavam como carvões umedecidos.
A ladainha cresceu de tom e Damião, cujos olhos mais e mais se acostumavam à luz mortiça, reconheceu o feiticeiro, um certo Mauae, que gozava em toda aquela região da reputação de sábio e adivinho. Mirrado e de pele negra, sem nenhum dente e incrivelmente velho, não era uma figura grata de se ver, e muito menos naquelas circunstâncias. A certa altura, levantou-se e mostrou o corpo inerme de um cachorro cuja garganta tinha cortado. Segurando-lhe a cabeça em ângulo reto, deixou o sangue do animal escorrer para uma grande gamela e, depois de enchê-la, abandonou o cadáver e concentrou-se sobre a sua repugnante poção, balançando o corpo para frente e para trás ao som de uma cantilena, como se tentasse entrar em transe. Subitamente, a invocação cessou e o feiticeiro ergueu a mão, em sinal aos tamborileiros para que parassem.
O profundo silêncio que se seguiu, quebrado apenas pela respiração ofegante do mago, parecia quase sobrenatural e estava carregado de expectativa. A um segundo sinal, apagaram-se três das tochas e os olhos de todos, esgazeados de terror, fixaram-se obsessivamente na sombria figura do feiticeiro, que agora estendia a mão para além da carcaça degolada do cachorro e extraía da escuridão outro objeto, um tosco boneco de madeira cujo rosto fora pintado de branco e que vestia algo de parecido com uma batina preta. Em volta do seu pescoço pendia uma pequena cruz de madeira, e em torno da cintura trazia um terço cuja falta Damião sentira havia algum tempo. Sem sombra de dúvida, o boneco pretendia ser uma efígie do sacerdote, e o feiticeiro fez-lhe umas caretas enquanto se voltava para a sua sangrenta gamela.
Damião entrou em ação. Sem uma única palavra, lançou-se no meio dos assistentes, e estes, atordoados pelo súbito aparecimento, ficaram momentaneamente paralisados. Mas logo um urro uníssono se ergueu de todas as gargantas e o grupo tentou avançar sobre ele. Enraivecido, o missionário fez sem querer a coisa mais conveniente de todas: arrancou o boneco das mãos de Mauae e, com um safanão, lançou o feiticeiro para longe, fazendo-o derrubar a gamela, cujo conteúdo se espalhou numa grande mancha escura. Ao verem o sangue derramado, os nativos detiveram-se imediatamente e caíram num silêncio pasmo, enquanto presenciavam um espetáculo que não esperavam: o sacerdote fazia em pedaços a efígie. Nos seus rostos, o ódio deu lugar ao medo e depois à perplexidade. Esperavam que uma terrível catástrofe se abatesse sobre o homem branco que se atrevia a destruir o boneco mágico, mas nada de grave aconteceu; em vez dos trovões dos espíritos irados, só se ouvia uma torrente de imprecações vindas da figura agachada do feiticeiro, que, tendo-se esgueirado para a escuridão do fundo, morria visivelmente de medo do padre.
Damião perscrutou os rostos escuros que o cercavam, lendo-lhes os pensamentos. Os pais desses homens haviam praticado os mais horrendos sacrifícios humanos sob as ordens dos seus kahunas, e nas suas aldeias ainda viviam anciãos que se vangloriavam de ter visto a carne do capitão Cook queimada sobre os altares; se aqueles nativos continuassem a ter a menor ponta de fé no autor do estúpido ritual a que acabavam de assistir, era muito provável que dessem a Damião o mesmo fim que tivera o descobridor. Mauae tinha de ser completamente desacreditado.
Com um movimento de braços repentino e violento, que fez os kanakas recuarem alarmados, o sacerdote dispersou pelo chão com desprezo os restos do boneco. "Por acaso vocês são crianças, para terem medo de um boneco e do sangue de um cachorro?", perguntou-lhes com desdém. A seguir, calcando a cabeça do fetiche na lama, demonstrou-lhes de maneira irrefutável que nenhum mal lhe podia advir dos maus espíritos, por mais que os insultasse. Os rostos tensos assumiram um ar de dúvida e a seguir de vergonha, e ninguém tentou detê-lo quando se encaminhou para a saída, depois de lhes dizer que aquele lugar infecto não era próprio de homens de bem e que deviam retornar para as suas esposas e filhos. A passos largos, o sacerdote regressou a casa, feliz com a vitória alcançada.
Depois desse incidente, quase ninguém ousou opor-se à sua pessoa. Em breve, toda a paróquia fervilhava de atividade.
Ele foi beatificado por João Paulo II e canonizado por Bento XVI, em 1995 e 2009, respectivamente.
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